Sexta Feira Santa e o mistério da cruz

“O coração tem razões que a razão não compreende”: expressão da sabedoria popular que se usa para definir atitudes humanas indefiníveis. A mesma expressão há de valer, e com maior razão, para aceitarmos as “loucuras de amor” do coração de Deus no mistério da Cruz. Por isso mesmo que é mistério, a inteligência entende menos a Cruz que o coração. São “pensamentos do coração”.

A Cruz simboliza as duas direções que se cruzam do mandamento do amor: o amor a Deus na direção vertical e o amor ao próximo na direção horizontal. Pela primeira Carta do Apóstolo João (1Jo 4, 10), sabemos que antes de mandar amar, Deus nos amou primeiro. Em sua encíclica “Deus é amor”, o Papa Bento XVI observa: “Agora o amor já não é apenas um mandamento mas é a resposta ao dom do amor com que Deus vem ao nosso encontro” (nº 10).

Antes de mandar amá-lo e amar o próximo, Ele ama.

A Cruz é o sinal que marca, envolve e acompanha a vida do cristão. Ela é sempre a forte lembrança da maior prova do amor de Deus pela humanidade: a entrega do seu Filho único pela vida do mundo. A Eucaristia é mais do que simples lembrança do ato de amor.

É a sua presença duradoura, fonte e ápice da vida cristã, conforme a define o Concílio Vaticano II. A Cruz só fala do amor. Olhá-la e não ver o que ela significa de amor é não ver sentido nela. Como os judeus, só vê nela motivo de escândalo; como os pagãos, só vê loucura, conforme testemunha São Paulo na primeira Carta aos Coríntios: “Pois o que é dito loucura de Deus é mais sábio do que os homens e o que é dito fraqueza de Deus é mais forte do que os homens” (1Cor 1, 25).

Olhar a Cruz e não ver que foi nela que Jesus Cristo, o amor encarnado de Deus, deu sua vida por nós é não ver o que viu o oficial romano que estava bem na frente da Cruz na hora em que Jesus expirou: “De fato esse homem era mesmo o Filho de Deus” (Mc 15, 39).

Olhar a Cruz e não ver que nela se travou o verdadeiro duelo entre vida e morte com a vitória da vida é estar desamparado na fé segundo declaração do Apóstolo Paulo: “Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa fé”.

Eis a mais bela lição da Cruz na qual Jesus Cristo ofereceu por nós sua vida: a morte por amor não é negação da vida. É passagem, é páscoa. É assim também toda morte unida à dele: caminho para a ressurreição.

Cito mais uma vez Bento XVI na encíclica “Deus é Amor”: “Eis como Jesus descreve seu caminho pessoal que o conduz através da Cruz à ressurreição: o caminho do grão de trigo que morre e dá muito fruto. Partindo do centro do seu sacrifício pessoal e do amor que aí alcança a sua plenitude, Ele, com tais palavras, descreve a essência do amor e da existência humana em geral” (nº 8).

Escondido pelo manto da noite para não ser reconhecido pelos companheiros do Sinédrio e, ao mesmo tempo, atraído pela Luz que desfaz as trevas, Nicodemos vai ao encontro de Jesus porque sente que Deus está com Ele mas ainda não vê Deus nele. E Jesus revela-lhe: “É necessário que o Filho do homem seja levantado para que todos que nele crerem tenham a vida eterna” (Jo 3, 14).

Levantado na Cruz ele esteve para que todos vejam nele quanto Deus amou o mundo entregando o seu Filho unigênito; levantado na Cruz ele implorou perdão ao Pai pelos seus algozes que não “sabem o que fazem”, jeito próprio da misericórdia divina de perdoar; levantado na Cruz ele deu cumprimento ao oráculo do Senhor Javé ao profeta Ezequiel: “Deus não quer a morte do pecado, e sim que ele se converta e viva” (Ez 18, 23-32).

Na Sexta-feira Santa, a liturgia da Igreja celebra o mistério da Cruz fazendo-nos sentir o significado e o alcance dos sofrimentos de Jesus como Sumo Sacerdote da nova Aliança: “Embora sendo Filho de Deus, aprendeu a ser obediente através de seus sofrimentos. E tornou-se a fonte de salvação eterna para todos que lhe obedecem” (Heb.5, 8-9). A sua experiência de “Servo Sofredor” era inseparável da sua experiência íntima com Deus.

O momento comovente dessa celebração é a “Adoração da Cruz”, exposta de modo encenado e com a participação dos fiéis.

E, a cada vez que a Cruz vai sendo desvelada, canta-se: “Eis o lenho da Cruz do qual pendeu a salvação do mundo. Vinde adoremos!”.

A Cruz não é um lenho que significa morte mas vida. Celebramos a morte do Senhor na Cruz; hoje contemplamos sua cabeça coroada de espinhos, suas chagas expostas e o lado do seu coração rasgado pela lança; hoje beijamos seu Corpo pendente na Cruz; consolamos sua mãe dolorosa que nos foi dada por Ele mesmo como nossa mãe.

A Igreja também canta nesse dia: “Salve, ó Cruz, nossa esperança!”

Porque, no primeiro dia da semana, manhã da Páscoa da nova Aliança, como Ele mesmo havia predito, “o Filho do homem sofrerá muito, será entregue à morte, mas ao terceiro dia ressurgirá” (Mt 16, 21).

Ele “retomará a vida que livremente ofereceu ao Pai” para caminhar vitorioso no meio de nós: “Eu estarei convosco todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28, 20).

Se me perguntarem: por que Jesus Cristo quis morrer na Cruz? Responderei simplesmente: o coração de Deus tem razões que a inteligência humana não compreende.

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