A história da heresia do Gnosticismo

Por Edivaldo Júnior
Tela Universum (C. Flammarion, Holzschnitt, Paris 1888). Contém uma síntese das idéias gnósticas a respeito do conhecimento acerca do universo
Ao contrário dos ebionitas, muito apegados às tradições judaicas, os gnósticos em geral eram pagãos que, aceitando a fé cristã, nela queriam introduzir suas concepções pessoais, suas teorias filosóficas, suas quimeras passadas.
A palavra Gnose, vinda do grego, significa: Conhecimento ou Ciência. Os gnósticos se julgavam pensadores originais que não se podiam dobrar à fé dos simples fiéis. Durante os primeiros séculos da Igreja, houve um verdadeiro formigar de heresias de inspiração gnóstica. Seria inútil referir aqui, detalhadamente, todos os sonhos dessas seitas distantes. Limitemo-nos a dar uma idéia geral. Dois problemas parecem ter chamado a atenção dos gnósticos: o problema da criação e o problema do mal. Aliás, são dois problemas intimamente ligados. Pois, se Deus criou o mundo, donde vem o mal? Se não criou o mal, como pode ser considerado Criador único das coisas.
Sobre o tema, os gnósticos construíram sistemas audaciosos. Segundo eles, além do reino da luz, que é o de Deus, devemos distinguir o das trevas que é o da Matéria eterna e das trevas. Entre o Deus-Abismo, como costumavam falar, e o organizador da Matéria, que chamavam de Demiurgo, deve ter havido grande número de graduações, que chamavam de Eons. E a maioria das seitas juntava um Eon masculino com um Eon feminino. O Demiurgo, auto do nosso mundo material, segundo eles, era ou o último dos Eons, o mais afastado do Deus-Abismo, ou um Demônio que arrebatara uma centelha da Plenitude divina — o Pleroma — a fim de com ela animar a matéria.
Para os gnósticos, tal origem do mudo explica a diversidade dos espíritos humanos: distinguiam entre os Gnósticos ou Espirituais, eles mesmos, os instruídos, em quem a matéria é dominada pelo Espírito de Deus; os Cristãos Ordinários, em quem Matéria e Espírito estão mais ou menos equilibrados; e os Pagãos ou MateriaisHílicos; nos quais a matéria leva, decididamente, a melhor sobre o Espírito.
Aplicando os próprios sistemas à fé cristã, os Gnósticos costumavam fazer de Cristo um Eon enviado por Deus. Esse Eon se apoderou do homem Jesus no momento em que foi batizado no Jordão. Daí em diante teve por missão levar os homens à verdadeira Gnose, que é o Evangelho, para libertar os homens da matéria. Foi assim que, graças a Ele, se operou a Redenção. Quando o Evangelho tiver completado sua obra sobre a terra, todas as parcelas de espírito divino, aprisionadas na matéria, voltarão à Plenitude de Deus — Pleroma divino. E o reino das trevas ficará para sempre nas trevas.
Na exposição agora feita, há várias idéias que ressurgiram em nossos dias tanto entre os teósofos como entre os espíritas.
A Igreja primitiva precisou da maravilhosa assistência do Espírito Santo para não submergir, desde o início, nessas especulações aventureiras e pretensiosas. O Gnosticismo prestou um serviço providencial à Igreja. Obrigou os fiéis a cerrar fileiras em torno dos pastores e principalmente em torno do bispo, representante de Cristo e sucessor dos apóstolos, em cada Igreja particular².
PRINCIPAIS CHEFES GNÓSTICOS
Costuma-se dizer que o gnosticismo remonta a Simão Mago, de quem se fala nos Atos dos Apóstolos, aquele que propôs comprar dos Apóstolos o poder de fazer descer o Espírito Santo sobre os fiéis, como os vira fazer. Depois dele, fala-se num certo Cerinto, que foi combatido pelos Apóstolos, especialmente por São João Evangelista.
Mas são figuras um tanto exploradas pela lenda. Em seguida, se desenvolveram duas correntes gnósticas, uma na Síria, mais positiva³ e prática, a outra em Alexandria, mais especulativa e aventureira. A primeira Gnose tem poucos nomes conhecidos. A segunda, ao contrário, teve alguns chefes de talento, refutados pelos Padres. Foi o que nos permitiu conhecer-lhes os sistemas. Citemos apenas Valentim, Carpócrates e Márcio.
Valentim, de origem egípcia, parece ter pregado suas idéias em Roma, entre 135 e 160. Várias vezes foi excomungado e expulso da Igreja. Acabou retirando-se para Chipre, onde fundou seita bastante florescente.
Carpócrates parece ter dado o primeiro lugar ao problema moral. Pois, entre os gnósticos, alguns viam na matéria a sede de todo mal e por isso pretendiam proibir o casamento como coisa impura. Chamaram-no de encratitas ou continentes. Carpócrates e os discípulos, ao contrário, garantiam que tudo o que se realiza na matéria é insignificante sob o ponto de vista da alma. Preludiando o quietismo, de que Lutero não será isento, e que veremos afirmar-se com Molinos no século XVII, dava como indiferentes todas as desordens da sensualidade. Possuía um filho, Epifânio, que morreu jovem e cheio de vícios. Mandou que o honrassem como um deus dentro da seita. Carpócrates e Epifânio, contemporâneos de Valentim, são também, um pouco, os antepassados do comunismo [grifo nosso].
Márcio deve ser separado dos outros gnósticos. Originário de Sínope, no Ponto, veio a Roma pelos anos 135-140 e foi recebido na Igreja. Dez anos mais tarde, rompia ruidosamente e fundava uma seita perniciosa que duraria muito tempo. Sua doutrina essencial era a que chamava de Antítese. Efetivamente, um tanto ao modo de Lutero mais tarde, opunha o Antigo Testamento, obra do Deus justo, ao Novo Testamento, obra do Deus bom. Lutero contraporá também Lei e Evangelho. A Lei condena e o Evangelho salva.
OS OFITAS
Entre as seitas gnósticas, houve algumas que cultuaram a Serpente do Paraíso, assim como hoje há quem cultue Satanás, Príncipe deste mundo. São conhecidos pelo nome de Ofitas, ou adoradores da Serpente. A razão que davam ao culto é essa: segundo a Bíblia, a Serpente foi a primeira que se revoltou contra o Demiurgo criador deste mundo de miséria em que estamos e a primeira que propusera aos homens a “ciência do bem e do mal”. Parece ter sido em seitas dessa espécie que os Livros apócrifos, que não passam de caricaturas dos Livros Sagrados da nossa Bíblia, fora mais estimados 4.
________

¹ – Artigo adaptado para o acordo ortográfico da língua portuguesa de 1990.
² – A premissa que o autor trabalha é a de que o papel das heresias, para confirmar o bom espírito de fé e sapiência dos Cristãos, fora preponderante e até certo ponto bom para as almas.
³ – Talvez aqui queira dizer empírica, em contraste com a frase seguinte e segundo a compreensão semântica da época do autor do livro.
4 – CRISTIANI, Monsenhor. Breve história das heresias / tradução de José Aleixo Dellagnelo – São Pauo: Flamboyant, 1962, pp. 08-12.

 

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